ANGÚSTIA:
CONCEITO HEIDEGGERIANO PRESENTE NA OBRA “A HORA DA ESTRELA” DE CLARICE
LISPECTOR.
SANTOS, Jardel Phellipe Brito dos
Instituto Diocesano de Filosofia e
Teologia
RESUMO
A
presente pesquisa tem como finalidade a análise do conceito de angústia apresentado
pelo filósofo alemão Martín Heidegger no seu trabalho mais conhecido “Ser e
Tempo”, presente na obra “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, evidenciando
as aproximações e a maneira que a autora buscou para utilizar esse conceito no
seu conto e as evidências dessa angústia presentes no decorrer da narrativa. A
angústia é aquela situação afetiva fundamental que retira o homem de uma
estabilidade que não o permite se perceber com o ser mais próprio e isolado do
homem. É assim que queremos ver como Clarice constrói na sua narrativa, através
da personagem Macabéa, uma nordestina que vai morar no Rio de Janeiro, enfatizando
sua passagem da existência inautêntica para uma existência autêntica após seu
momento epifânico. O trabalho mostra, ainda que suscintamente, uma possível
análise das contribuições da filosofia existencialista para a literatura e,
assim, unindo essas artes alargar a visão de mundo que circunscreve o raio de
alcance de seus esquemas conceituais. Uma tentativa de apresentar os possíveis
diálogos entre Filosofia e Literatura.
PALAVRAS:
Angústia,
Existência, Heidegger, Clarice Lispector.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem
como finalidade a análise do conceito de angústia apresentado pelo filósofo
alemão Martín Heidegger aplicado à obra “A Hora da Estrela”, da literária
ucraniana/brasileira Clarice Lispector, evidenciando as aproximações e a
maneira que a autora apresentou esse conceito no seu conto e as aproximações
presentes no decorrer da narrativa, finalizando com algumas colaborações acerca
do resultado encontrado.
Essa investida surgiu
pelo crescente interesse de conhecer as obras de Clarice Lispector e a
curiosidade filosófica pela corrente existencialista especialmente em Heidegger,
bem como pela busca de interdisciplinaridade que constitui umas das tarefas importantes
do presente trabalho, provocando uma possível intersecção entre os escritores
supracitados.
Unir Filosofia e Literatura,
portanto, alarga e até reformula a visão de mundo que circunscreve o raio de
alcance de seus esquemas conceituais, pois o discurso literário faz-se
território das racionalidades compartilhadas pelo pluralismo de ideias, de
concepções de mundo, de metafísicas soltas, de ontologias que estilizam a
angústia contemporânea e mais diversificados assuntos de interesses gerais.
1
O CONTO “A HORA DA ESTRELA”
Esse é o último romance
de Clarice. Ela escolhe como narrador o pseudônimo Rodrigo S. M. “É uma
história de começo, meio e gran finale” (LISPECTOR, 1998, p. 13). É a narrativa
da vida de Macabéa, uma jovem nordestina que sai da sua cidade e vai morar no Rio
de Janeiro e trabalhar como datilógrafa. Seus dramas se passam exteriormente,
pois interiormente ela nem se sente gente.
Macabéa
nasceu em Alagoas e tem 19 anos. Era órfã e não tinha nenhuma recordação dos
seus pais e desde cedo morava com uma tia muito religiosa e cheia de preceitos
morais adornados de superstições e tabus. Nesse ambiente cresceu a inocente
“Maca”.
Com o
ócio e a presença tão somente da jovem, a tia, às vezes sem motivo, gostava de
dar-lhe cascudos na cabeça só por prazer. Mas o seu pior castigo era privar a
garota da goiabada com queijo, sua maior paixão. Foi assim que ela passou a
infância sem ter sido criança, sem ter tido amigos, sem ter tido amor de
família, sem animais de estimação. Tudo girava em torno da sua tia: única
parenta. Mudam-se para a cidade grande.
Apesar de ter estudado
pouco e não saber escrever direito, Macabéa faz um curso de datilografia e consegue um emprego, no qual recebe
menos que o salário mínimo. Após a morte da tia, deixa de ir à igreja e passa a
repartir um quarto de pensão com quatro balconistas de uma loja popular.
Macabéa
cheirava mal, pois raramente tomava banho. À noite, não dormia direito por
causa da tosse persistente, da azia — em virtude do café frio que tomava antes
de se deitar — e da fome, que ela disfarçava comendo pedacinhos de papel.
A moça
tinha hábitos e manias que aliviavam um pouco a solidão e o vazio de sua
existência. Não se percebia como gente, como ser. Surgem, daí, já alguns
indícios daquilo que Heidegger concebe como angústia.
Entretinha-se
ouvindo a Rádio Relógio num aparelho emprestado de uma das colegas. Essa
emissora informava a hora certa, transmitia cultura inútil e propaganda, sem
nenhuma música. A garota colecionava também anúncios de jornais e revistas, que
colava num álbum.
Era
muito magra e pálida, pois não se alimentava direito. Basicamente vivia de
cachorro-quente com Coca-Cola, que comia na hora do almoço, em pé, no balcão de
uma lanchonete ou no escritório em que trabalhava. Não sabia o que era uma
refeição quente. Seus luxos consistiam em pintar de vermelho as unhas, que roía
depois, comprar uma rosa e, quando recebia o salário, ir ao cinema, o que a
fazia desejar ser estrela de cinema, como Marilyn Monroe, seu grande sonho.
Certo
dia, o chefe de Macabéa, Raimundo, cansado do péssimo trabalho que ela
executava, com textos datilografados cheios de erros de ortografia e marcas de
gordura, resolve despedi-la. A reação da garota de se desculpar pelo
aborrecimento causado, acaba desarmando Raimundo, que decide mantê-la por mais
um tempo.
Num
dia 7 de maio, Macabéa mente dizendo que arrancaria um dente e falta ao
trabalho para poder aproveitar a liberdade da solidão e fazer algo diferente.
Assim que as colegas saem para trabalhar, ela coloca uma música alta, dança,
toma café solúvel e até mesmo se dá ao luxo de se entediar. É nesse dia que
conhece Olímpico de Jesus, único namorado que teve.
Não
foi um namoro convencional. Olímpico também havia migrado do Nordeste, onde
matara um homem, fugindo para o Rio de Janeiro. Conseguira emprego numa
metalúrgica, o que dá delírios de grandeza em Macabéa. Afinal, ambos tinham
profissão: ela era datilógrafa e ele, metalúrgico. Sentia dignidade nisso,
mesmo sem saber o que seria dignidade.
Mau-caráter
e ambicioso, Olímpico morava de favor no trabalho, roubava os colegas e
almejava um dia ser deputado. O passeio dos namorados era sempre seguido de
chuvas e de programas gratuitos, como sentar-se em bancos de praça para
conversar. Nessas ocasiões, Olímpico se irritava com as perguntas que Macabéa
fazia, o que a levava constantemente a se desculpar, pois não queria perdê-lo,
apesar de seus maus-tratos.
Certo
dia, admitindo que ela nunca lhe dava despesa, Olímpico decide pagar um
cafezinho para Macabéa no bar da esquina. Avisa, porém, que se o café com leite
fosse mais caro, ela pagaria a diferença. Macabéa, emocionada com a
"bondade" do namorado, acaba enchendo o copo de açúcar para
aproveitar, ficando enjoada depois. Em um passeio ao zoológico, Macabéa, ao se
deparar com um rinocerante, fica com tanto medo que urina na roupa e tenta
disfarçar para não desagradar ao namorado. Um dia, vendo que só o chefe e sua
colega de escritório, Glória, recebiam telefonemas, Macabéa dá uma ficha
telefônica para que Olímpico ligue para ela. Ele se recusa, dizendo que não
queria ouvir as "bobagens" dela.
Até
que, após conhecer Glória, Olímpico decide romper com Macabéa para ficar com a
sua amiga. O rapaz considera a troca um progresso, já que elas eram opostas:
Glória era loira (oxigenada), cheia de corpo, morava numa casa confortável,
tinha três refeições por dia e, o mais importante, seu pai era açougueiro,
profissão ambicionada por Olímpico.
Após
esse episódio, Macabéa vai ao médico e descobre que tem tuberculose, mas não
entende muito bem a gravidade da doença. Sente-se bem só por ter ido ao
consultório e não acha necessário comprar o medicamento receitado. Por não se
permitir refletir, continua imersa na existência que Heidegger denomina
inautêntica, não permitindo que as coisas fora de si sejam percebidas por ela,
nem seu valor ou importância.
Com
dor na consciência por ter roubado o namorado de Macabéa, Glória a convida para
lanchar em sua casa. Macabéa, mais uma vez, aproveita a oportunidade e come
demais. Apesar de passar mal, não vomita para não desperdiçar o luxo do
chocolate, mas sente remorsos por ter roubado uma rosquinha.
Finalmente,
aconselhada por Glória, Macabéa vai até uma cartomante para saber de sua sorte.
Lá, é recebida pela própria Madama Carlota, que impressiona a pobre moça pelo
"requinte" de sua residência, repleta de plástico, e pela amabilidade
afetada com que a trata e por sempre pronunciar o nome de Jesus que tanto
ouvira sua tia falar. Após Madama Carlota contar sobre sua vida como prostituta
e cafetina, lê as cartas para Macabéa, que, emocionada, pela primeira vez
vislumbra um futuro e se permite ter esperança. Afinal, iria se casar com um
estrangeiro rico, que daria todo o amor de que ela precisava ou, se quisesse,
poderia continuar com Olímpico, pois a cartomante teria visto que ele voltaria
para ela e iria lhe propor casamento.
Extasiada
com as previsões da cartomante, Macabéa atravessa a rua sem olhar e é
atropelada por uma Mercedes-Benz. Caída na calçada e sangrando, seu fim é
testemunhado por inúmeros espectadores que se aglomeram em torno dela, sem que
nenhum ofereça socorro. Por fim, a garota tosse sangue e morre. Havia chegado a
hora da estrela.
Em um
segundo momento, a narrativa prossegue com um novo foco narrativo. Começa
quando o narrador, andando pela rua, capta o olhar de desespero de uma jovem
nordestina no meio da multidão. A partir daí, nasce Macabéa, que representa a
miséria inerente ao autor e a todas as pessoas. Em uma relação de amor e ódio,
Rodrigo S.M. narra a vida dessa moça como tentativa de se livrar da sensação de
mal-estar que ela representa e que o contagiava, ao mesmo tempo em que se
apieda e se revolta, inclusive se sentindo culpado por viver num padrão mais
elevado que a maioria da população marginalizada.
Dessa
forma, intima o leitor a também se colocar no lugar do outro para experimentar
essa miséria e perceber que, no fundo, ela faz parte de todos nós. Por isso,
não basta denunciar as mazelas sociais, como a fase anterior que o modernismo
pregava, mas induzir o leitor a uma epifania, uma revelação, ainda que
despertada pela náusea, como nesse caso.
2 O CONCEITO DE ANGÚSTIA EM HEIDEGGER
Na
primeira parte da obra Ser e Tempo, Heidegger realiza a análise da existência
inautêntica na busca do sentido do Ser. A existência inautêntica é uma constatação
ontológica e não deve ser confundida com uma constatação moral (boa ou ruim).
Sendo assim, para ir até o Ser, o Dasein percorre o caminho da existência
autêntica, existência que traz a verdadeira revelação sobre o Ser. Isso só pode
ser possível no que ele define como angústia.
Nicola
Abbagnano, no seu dicionário de filosofia, apresenta-nos um conceito muito
claro e inicial para aquilo que este alemão nos apresenta como angústia:
Angústia
é a situação afetiva fundamental, ‘que pode manter aberta a contínua e radical
ameaça que vem do ser mais próprio e isolado do homem’: isto é, a ameaça da
morte. Na angústia, “o homem sente-se em presença do nada, da impossibilidade
possível da sua existência.” Nesse sentido, a angústia constitui essencialmente
o que Heidegger chama de “ser para a morte”, ou seja, a aceitação da morte como
possibilidade absolutamente própria, incondicional e insuperável do homem” (Sein und Zeit § 53) (ABBAGNANO, 2014,
P.63)
Heidegger
afasta-se do método fenomenológico formulado por seu grande mestre Edmund
Husserl, porque ele tinha pretensão de analisar os objetos do conhecimento tais
como se manifestam, como se apresentam imediatamente à consciência. Então, para
se chegar ao Ser, deveria passar pelo Homem, aquele que se dá a conhecer
imediatamente. A este chama de dasein,
ou Ser-aí, ou presença.
Nessa
lógica, para esse filósofo, a existência humana apresenta duas possibilidades:
uma autêntica e outra inautêntica. A existência inautêntica é a vida cotidiana
do homem, constituída de facticidade, existencialidade e ruína; uma decadência
no mundo dos demais entes a ponto de confundir-se com eles. Não tendo a
capacidade de transcender, sem perceber-se como um ser que pode tornar-se
inteiro, em projeções do que ainda não é. O desvio de cada indivíduo do projeto
essencial de sua vida.
Essa
existência inautêntica torna o homem conformado com sua situação de
distanciamento de si próprio e do Ser, acarretando na banalidade e anonimato
que desfiguram o homem enquanto presença e manifestação do Ser-no-mundo.
A
existência autêntica, por sua vez, é um ser-para-a-morte. Pois, como afirma
Reale e Antiseri (2007, p.586) “compreendendo a possibilidade de morte como
possibilidade da existência e somente assumindo essa possibilidade com decisão
antecipadora é que o homem encontra o seu ser autêntico”.
Em
decorrência dessa explicação sobre a existência, encontramos na existência
autêntica a angústia, o único meio capaz de reconduzir o homem ao encontro de
sua totalidade como ser e então, poder recolher os seus pedaços que foram
reduzidos pela imersão na monotonia e indiferenciação da vida cotidiana. Ela
não é um sentimento, mas a disposição ontológica fundamental.
É a
angústia que leva o homem vencer a traição cometida a si mesmo, responsável
pela conversão do homem ao projeto inicial de assemelhar-se ao Ser, do ôntico
ao ontológico, leva-o ao conhecimento de sua dimensão mais profunda.
Na
angústia, tudo que cerca o homem é envolvido por uma estranheza radical, onde
as coisas são desprovidas de importância, causando um sentimento de perda,
vazio, solidão. Assim, sem encontrar um motivo no mundo para a angústia, o
mundo surge apontando para o nada e o homem percebe-se como ser-para-a-morte. A
angústia faz parte do caminho para a existência autêntica. A angústia garante o
reconhecimento da necessidade do dasein projetar-se e assim relacionar-se com o
mundo.
A
partir desse estado de angústia, abre-se para o homem, segundo Heidegger, uma
alternativa: fugir de novo para o esquecimento de sua dimensão mais profunda,
isto é, o ser, e retornar ao cotidiano; ou superar a própria angústia,
manifestando seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo.
(CHAUÍ, 1989, P.10)
Essa
possibilidade de transcender, o homem percebe-se como capacitado a atribuir um
sentido ao seu ser. Fora de si mesmo, sobre o mundo, na relação direta com o
mundo que produz e para o qual se projeta incessantemente.
Aceitando
a finitude, o homem assume a angústia como referência a sua existência
autêntica, aparecendo aí a necessidade de liberdade de tal estágio. É como se a
angústia fosse sinônimo de liberdade, uma liberdade que permite ao homem
possibilidades autênticas. O próprio Heidegger afirma:
Na
presença, a angústia revela o ser para o poder-ser mais próprio, ou seja, o
ser-livre para a liberdade de escolher e acolher a si mesma. A angústia arrasta
a presença para o ser-livre para... (propensio in...), para a propriedade de
seu ser enquanto possibilidade de ser aquilo que já é sempre é. A presença como
ser-no-mundo entrega-se, ao mesmo tempo, à responsabilidade desse ser.
(HEIDEGGER, 2013, p. 254).
Com
essa liberdade, a angústia permite ao homem ultrapassar a barreira do ser
inautêntico e chegar ao existir autenticamente, porque é na existência que o
dasein se relaciona com o ser e é relacionando-se com o ser que existe, pois é
na angústia que se encontra a essência da existência do homem, permitindo que
ele possa se entender e se interpretar, atingindo a existência autêntica que o
Ser originariamente lhe projetou.
3 A ANGÚSTIA E A HORA DA ESTRELA
Em A
Hora da Estrela, Macabéa é apenas uma nordestina ingênua e alheia à realidade e
que não sabe o que é aquilo que ela sente. Só sabe que sente algo. Totalmente
imersa em uma existência inautêntica, desprovida de um reconhecimento de si
mesma em um mundo que lhe é posto diante de si para produzir e, ser-alguém
neste mesmo mundo; sem saber o que seja transcender e sem perspectivas, mesmo
que mínimas de ser alguém melhor, não capaz de vencer na vida e nas situações
cotidianas; moça imersa na indiferença de suas ações – bem como no fato de não
importar-se com o rigor formal das cartas que seu patrão solicitava e que eram
entregues com inúmeros erros gramaticais e sujas de gordura.
Ela
está conformada com a situação de distanciamento do ser que, nem mesmo sabe
quem é, lançada na banalidade e no anonimato que lhe causa desfiguração
enquanto presença do Ser-no-mundo, tal como Olímpico de Jesus lhe dirige: “-
Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer. (LISPECTOR, 1977,
p.60).
Macabéa
era incompetente para tudo, não tinha jeito de gente, de moça de cidade grande.
Ela não era percebida nas ruas. Era “um café-frio”. Sentia que o mundo estava
fora dela e que ela estava fora de si mesma. Ela não sabia que era o que era,
assim como um cachorro não sabe que é cachorro, por isso não se sentia infeliz:
não sabia nem mesmo o que seria felicidade. Não achava que a realidade
realmente existisse, não fazia diferença, não precisava mudá-la.
O
conto mostra uma moça que queria se encontrar com algo que não sabia. Essa é a
necessidade de transcender que Heidegger salientava, a vontade de encontrar-se
com o Ser, o objetivo de toda a vida do homem. Ela não conseguia se enxergar
como Macabéa, como uma mulher-no-mundo, ela se sentia pequena demais, sem
valor.
Depois
do seu encontro com a cartomante, ela sai grávida de um futuro. Foi a primeira
vez que se permitiu ter esperança. Foi quando sentiu o quanto feliz o sonho lhe
poderia fazer.
Atingida
pelo Mercêdes amarelo, no chão, sangrando, tem sua primeira reflexão sobre si
mesma, “lutando muda, como alguém que se afoga, mesmo que morra depois”
(LISPECTOR, 1977, P.81).
Lançada
no chão abraçava-se a si própria com vontade do doce nada. Ali, com olhares que
a espiavam sentiu pela primeira vez que estava viva, que tinha existência.
Agora era uma existência autêntica, sentia que nascera da morte. Ela foi no
mais profundo de si buscar a essência de ser ela mesma, de voltar para aquele
projeto inicial que o Ser lhe destinara.
Agora
via na morte que lhe abraçava, a nova possibilidade de assumir sua existência
que por muito tempo acreditava não ter. A angústia de estar ali, sozinha, mesmo
com olhares curiosos que não lhe estendiam mãos e nem prestavam socorro, lhe
conduzia ao encontro de si e da sua totalidade como ser. Ela se amou. Ela
iniciou seu ritual de recolher os pedaços de sua vida medíocre e inócua.
Ela
venceu a barreira que lhe impedia de existir, rompeu com o estranhamento do
cotidiano. Atingiu a parte que fora feita. Queria vomitar algo que não corpo,
vomitar algo luminoso. Ela transcendia de encontro com o ser-livre. Era seu
destino e agora ela o aceitava.
Ali,
deitada, refletindo sobre aquilo que estava acontecendo, uma nova realidade
passava por ela. Ela conseguia sentir que o mundo possuía uma vida fora dela e
que estava ali. Ele começou a sentir o mundo. Sentiu-se no mundo pela primeira
vez. Sentiu-se gente, mulher. Sentiu que estava viva, mesmo que ainda por pouco
tempo. Percebeu-se. Era seu momento. Estava nascendo.
APROXIMAÇÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS
Clarice
Lispector tem uma forma bem peculiar, nesse conto, na sua maneira de narrar.
Interessante é perceber o quanto demora fundamentalmente ao refletir na
narrativa a questão do Ser, a história mais autêntica, segundo Heidegger, que
adensa a história factual quando os homens acolhem os sinais dos tempos ou os repele,
numa práxis de encontros ou de desencontros, aumentando o teor de
imprevisibilidade dos eventos.
Nesse
enredo, Clarice abre perspectivas numa zona de transição em que a personagem
atinge um clímax de tempo, de sofrimentos, de déficits existenciais, propícios
à ascensão mística ou transcendência, ao encontro com o Ser, não com Deus, pois
essa não é a pretensão de Heiddeger.
Com
ela há uma grande valorização da interioridade. Uma interioridade inerente à
história do Ser que é a sementeira dos acontecimentos, formando o conhecimento
antecipado dos fatos futuros, algo parecido com a formulação de Heidegger para
a angústia que pretende antecipar o acontecimento da morte, que é a
possibilidade da não possibilidade de não mais ser. Ela, voltada em si,
percebe-se como uma pessoa e que sente com o mundo, no mundo.
Durante
a vida de Macabéa era comum sua estranheza com o mundo. As coisas aconteciam
com ela, mas nada lhe afetava e não conseguia deixar nada de si nos demais
entes. Esse sentimento encontra ressonâncias com o que Heidegger concebeu como
angústia. No § 40 da obra Ser e Tempo, ele nos apresenta a angústia como a
experiência reveladora do Nada. Na visão do filósofo, a angústia propicia a
tendência para a abertura e desvelamento do dasein: “[...] é preciso lembrar
que a constituição fundamental da presença é ser-no-mundo. Aquilo que a
angústia se angustia é o ser-no-mundo como tal” (HEIDEGGER, 2002, P.249).
Da
angústia se dá a abertura para o mundo e assim a perplexidade de Macabéa diante
de si mesma, da nova realidade que encontra ali, no chão, mesmo que morrendo
muda, o narrador nos faz ir além e mostra-nos sua chegada à existência
autêntica, a ressignificação de ser Macabéa.
Vencida a angústia, não retorna ao seu estado
anterior. O momento Epifânio esperado pelos leitores claricianos acontece:
nasce uma nova estrela, uma nova Macabéa. Uma nova criatura com uma existência
direcionada ao Ser. Uma existência autêntica antes de morrer fisicamente.
Caminhos
que se encontram e que se completam: a poética de Clarice e a reflexão de
Heidegger, ambas percorrendo a mesma trilha, alicerçada pelo sentido do Ser. No
desenrolar do conto, aparece vivo o movimento e a prática da eterna questão que
guiou a história do Ser: quem sou eu? “É que ‘quem sou eu?’ provoca
necessidade. E como satisfazer a necessidade: quem se indaga é incompleto”
(LISPECTOR, 1998, P. 15).
Nesse
ínterim, é importante ressaltarmos que a finalidade deste trabalho não é
apresentar uma análise definitiva que forneça a compreensão da complexidade que
as obras de Clarice e o pensamento de Heidegger abarcam. É, antes de tudo, a
tentativa de evidenciar um possível diálogo entre a Filosofia e a Literatura;
um diálogo, por vezes, tenso, mas com um fio ainda que tênue ligando as
aproximações e distâncias dessas distintas áreas de conhecimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HEIDEGGER, MARTIN. Ser e Tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante.
Petrópolis: Vozes, 2013.
KAHLMEYER-MERTENS, ROBERTO S. 10 lições sobre Heidegger.
Petrópolis: Vozes, 2015.
ABBAGNANO, NICOLA. Dicionário de Filosofia. São Paulo:
Martins Fontes, 2014.
LISPECTOR, CLARICE. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco,
1998.
ANTISERI,
DARIO; REALE, GIOVANNI. História da Filosofia. Vol. 3. 8ª ed.
São Paulo: Paulus, 1990.
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